Do Líbano ao Brasil [Introdução]

“De árabe e turco muitos o tratavam, é bem verdade. Mas o faziam exatamente seus melhores amigos e o faziam numa expressão de carinho, de intimidade. De turco ele não gostava que o chamassem, repelia irritado o apodo, por vezes chegava a se aborrecer:
– Turco é a mãe!
– Mas, Nacib...
– Tudo o que quiser, menos turco. Brasileiro – batia com a mão enorme no peito cabeludo – filho de sírios, graças a Deus.
– Árabe, turco, sírio, é tudo a mesma coisa.
– A mesma coisa, um corno! Isso é ignorância sua! É não conhecer história e geografia. Os turcos são uns bandidos, a raça mais desgraçada que existe. Não pode haver insulto pior para um sírio que ser chamado de turco.
– Ora, Nacib, não se zangue. Não foi para lhe ofender. É que essas coisas das estranjas pra gente é tudo igual...”
[...]
“Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam suas malas abertas, berliques e berloques, cortes baratos de chita, colares falsos e vistosos, anéis brilhantes de vidro, perfumes com nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo. Mulatas e negras, empregadas nas casas ricas, amontoavam-se ante as malas abertas:
– Compra, freguesa, compra. É baratinho... – a pronuncia cômica, a voz sedutora.
Longas negociações. Os colares sobre os peitos negros, as pulseiras nos braços mulatos, uma tentação! O vidro dos anéis faiscava ao sol que nem diamante.
– Tudo verdadeiro, do melhor.”
(Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela)

* * *

“Os turcos nasceram para vender
bugigangas coloridas em canastras
ambulantes.
Têm bigodes pontudos, caras
de couro curtido,
braços tatuados de estrelas.
Se abrem a canastra, quem resiste
ao impulso de compra?
É barato! Barato! Compra logo!
Paga depois! Mas compra!
A cachaça, a geléia, o trescalante
fumo de rolo: para cada um
o seu prazer. Os turcos jogam cartas
com alarido. A língua cifrada
cria um mundo-problema, em nosso mundo
como um punhal cravado.
Entendê-los, quem pode? [...]
Os turcos,
meu professor corrige: Os turcos
não são turcos. São sírios oprimidos
pelos turcos cruéis. Mas Jorge Turco
aí está respondendo pelo nome, e turcos todos são, nesse retrato
tirado para sempre... Ou são mineiros
de tanto conviver, vender, trocar e ser
em Minas: a balança
no balcão, e na canastra aberta
o espelho, o perfume, o bracelete, a seda,
a visão de Paris por uns poucos mil-réis?”
Carlos Drummond de Andrade, Os Turcos)

Introdução

A capacidade de dizer muito em poucas palavras é própria dos grandes autores. Nas citações com que abro este texto, vêm-se Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade colocarem em prosa e em verso os principais elementos que caracterizam a imagem que os cidadãos brasileiros têm dos imigrantes árabes – imagem esta que não distingue sírios de libaneses e associa-os erroneamente à origem turca.
Os elementos apresentados por Amado e Drummond – o pendor para o comércio que fez dos árabes mascates e lojistas, o despojamento, a esperteza (chegando por vezes à trapaça), a pronúncia estranha e mesmo algumas características físicas como a corpulência e o “bigode pontudo” –, mais do que formulações fantasiosas dos autores, são aspectos centrais do estereótipo do imigrante árabe formulado pela produção cultural brasileira e aceito pelo senso comum.
Vemos, assim, especialmente nas produções literária, cinematográfica e televisiva nacional, que têm a característica de trabalhar com base em estereótipos para representar grupos étnicos ou sociais, repetirem-se chavões sobre os imigrantes de origem árabe e suas características, como em alguns trechos das citações de Amado e Drummond, que perspicaz e ironicamente utilizaram-se dos lugares-comuns:
“– Árabe, turco, sírio, é tudo a mesma coisa.”
“Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam suas malas abertas, berliques e berloques, cortes baratos de chita, colares falsos e vistosos, anéis brilhantes de vidro, perfumes com nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo.”
“– Compra, freguesa, compra. É baratinho... – a pronuncia cômica, a voz sedutora.”
“– Tudo verdadeiro, do melhor.”[i]
“Os turcos nasceram para vender / bugigangas coloridas em canastras / ambulantes.”
“Têm bigodes pontudos, caras / de couro curtido”
“É barato! Barato! Compra logo! / Paga depois! Mas compra!”
“A língua cifrada / cria um mundo-problema, em nosso mundo / como um punhal cravado.”[ii]
Neto de imigrantes libaneses – embora meu avô Semi se considerasse sírio – e desde cedo interessado na cultura e na história árabes, até alguns anos atrás eu me sentia um pouco como o personagem Nacib ao ser chamado de turco – embora eu não tenha nada contra os turcos, ao contrário de meu avô, que foi um dos muitos jovens obrigados a fugir da Síria e do Líbano para escapar à obrigatoriedade de servir o exército do sultão otomano que ocupava as terras do Levante.
O que mais me incomodava, entretanto, não era ser chamado de turco, mas perceber o desconhecimento geral existente quanto à história do Oriente Próximo e à cultura árabe, do qual é resultante a grande confusão que se faz quando se trata do imigrante sírio e libanês – envolvendo o uso indiscriminado dos termos árabe, turco, sírio, libanês, judeu, muçulmano, maometano e muitos outros. A tese de doutoramento que originou este livro[iii] é, de certa forma, o resultado desse incômodo diante do amplo desconhecimento da história árabe em geral e libanesa em particular.
Durante a pesquisa, que se estendeu dos anos 1996 a 2000, procurei conhecer as diversas versões apresentadas sobre a história e a atualidade libanesas – especialmente no que diz respeito aos aspectos econômicos, sociais e políticos que possam ter influenciado o extenso movimento migratório de libaneses para o Brasil ao longo de 120 anos. Estudei a obra de pesquisadores provenientes de várias origens nacionais e credos políticos e religiosos, e preocupei-me em produzir documentação oral abrangendo os diversos grupos religiosos, regionais e etários representativos dos libaneses no Brasil, além de contar com minha própria experiência como neto de libaneses, o que faz de toda minha vida um verdadeiro laboratório de “experiência participante”.
Foram excluídos, da tese de doutoramento original, os capítulos que explicitam a metodologia adotada no trabalho e detalham o trabalho de campo – tal metodologia, a história oral, é tratada com mais detalhe em outros textos publicados por mim.[iv] Também se excluíram as textualizações das histórias de vida, que poderão talvez um dia vir a tornar-se uma publicação autônoma.
Em relação à chamada questão palestina, que se refletiu de forma inequívoca na história do Líbano contemporâneo, excluí grande parte do material que constava na tese, mantendo apenas as informações essenciais. Este assunto foi desenvolvido com bastante detalhe na obra A Guerra da Palestina: da criação do Estado de Israel à Nova Intifada,[v] que publiquei em novembro de 2002.
Por fim, excluíram-se também as dezenas de referências bibliográficas e notas de rodapé da tese original, mantendo-se apenas, e de maneira simplificada, as referências dos trechos ou autores citados diretamente. Ao final da obra listam-se não apenas os livros referidos na obra mas também a bibliografia complementar consultada para a redação da tese. O restante do trabalho sofreu apenas pequenas correções, embora em diversos momentos tenha me sentido tentado a reescrever completamente o trabalho, redigido há exatos quatro anos.
* * *
Este livro divide-se em duas partes. A primeira é dedicada ao contexto histórico do Líbano e à análise dos motivos que levaram os libaneses a emigrar durante os últimos 120 anos de sua história. Esta parte da obra é dividida em dois capítulos, referentes aos anos de 1880 a 1940 (capítulo 1) e de 1941 a 2000 (capítulo 2).
A segunda parte abrange diversos aspectos da vida do imigrante libanês no Brasil, compondo um quadro das principais diferenças entre os diversos grupos que aqui se estabeleceram, e foi elaborada com base nas entrevistas realizadas e em minha experiência de campo entre a comunidade árabe e libanesa de São Paulo, São Bernardo do Campo, Foz do Iguaçu e outras cidades do país. Inicia-se com a análise dos motivos que atraíram os imigrantes libaneses para o Brasil em detrimento de outros países de imigração, como os Estados Unidos e a Argentina (capítulo 3). Em seguida, analisa-se a recriação da identidade entre esses imigrantes e sua inserção na sociedade nacional através do trabalho, criticando a noção corrente de um caminho fácil de mascates a doutores (capítulo 4). Os capítulos seguintes são dedicados à análise das formas de manutenção das identidades culturais e religiosas entre os imigrantes, considerando-se o papel da família e das entidades sócio-culturais libanesas (capítulo 5) e das instituições religiosas da colônia (capítulo 6), sendo o item seguinte especialmente dedicado à vida muçulmana no Brasil (capítulo 7). Por fim, discute-se como os imigrantes libaneses posicionam-se frente aos fatos geopolíticos do Líbano e do Oriente Próximo, notando-se novamente as dissensões no seio da colônia (capítulo 8). Nos apontamentos finais, sumarizo as principais características dos grupos estudados, procurando responder às principais questões e hipóteses de trabalho que foram colocadas ao longo da pesquisa.
Espero que este livro responda a muitas perguntas que são cotidianamente feitas sobre os árabes e os libaneses, e que possa colaborar, ainda que modestamente, para o esclarecimento da verdadeira cultura árabe, ultimamente desvirtuada e vilipendiada pela mídia como poucas culturas o foram.

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[i] – Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela, p. 33, 55.
[ii] – Carlos Drummond de Andrade, Poesia e Prosa, p. 640-6.
[iii] – André Gattaz, História oral da imigração libanesa para o Brasil: 1880-2000.
[iv] – André Gattaz: Braços da Resistência: uma história oral da imigração espanhola (1995); Lapidando a fala bruta: a textualização em história oral (1996); Meio século de história oral (1998) e La búsqueda de identidad en las historias de vida (1999)
[v] – André Gattaz, A Guerra da Palestina: da criação do Estado de Israel à Nova Intifada (2002).